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O Talhante

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Ele conseguia identificar com exactidão o momento da sua mudança. Pensando no passado, arrependia-se, arrependia-se muito. Mas era a sua última oportunidade. Desempregado há dois anos, apenas com o décimo segundo ano, agarrara-se com toda a força àquele curso profissional de técnico de manipulação de carnes, de talhante. Pensara que tudo ia correr bem. Sempre adorara carne. Mas agora não conseguia rever aqueles churrascos, as febras estaladiças, as entremeadas escorrendo gordura, o bife mal passado sangrando debaixo do seu garfo, não conseguia encontrar alegria naquelas memórias, que já lhe tinham sido tão queridas. Agora, revia todos esses momentos em família, da simples caracolada ao melhor rodízio brasileiro, sem se contorcer, num horror que tremia sem que se pudesse controlar.

Tudo tinha começado no segundo semestre do curso profissional.

A visita ao matadouro.

Rebolando na cama, entre os lençóis frescos, essa recordação atingia-o como um míssil de cores e cheiros. Todas as noites. A visita ao matadouro começava pelas traseiras. Era tudo de trás para a frente. Primeiro equipavam-se com batas, toucas, sapatos descartáveis. Tudo era limpo, muito branco e luminoso, com um certo cheiro a limpeza misturado com carne. O cheiro de um talho. Viram as peças a serem desossadas, os órgãos internos limpos por uma série de gente equipada com todos os cuidados, como se cuidassem de perigosos vírus e não de pedaços que em breve serviriam de alimento. Depois, passavam por uma cortina. Aí, tudo mudava. Ruídos estranhos misturavam-se, pessoas gritando umas às outras, maquinaria sem fim trabalhando. Eram os magarefes limpando as carcaças do seu interior, separando tudo o que viria a ser comestível dos subprodutos inúteis. Continuavam e havia muito calor, antítese do gelo condicionado e inflexível das salas anteriores. Queimavam os pêlos das carcaças, para que a pele depois pudesse ser aproveitada. Para comer, certamente. Mais para trás. Carcaças, inteiras, porcos com a garganta cortada, que seguiam pelo ar, em linha. Ele podia sentir gotas de cordura a caírem na sua cabeça, mal protegida pela touca. E o cheiro piorava a cada momento. Em breve viu a razão. Sangue, porcos contorcendo-se enquanto lhes administravam o fatídico golpe na jugular, facas enormes, afiadas. O cheiro piorava. Porcos saindo num tapete rolante, deitados, inconscientes. O cheiro piorava. Porcos em fila, homens batendo nos porcos para que continuassem em fila. E, finalmente, lá estavam. Porcos vivos, deitados, descansados, chafurdando, lutando por um lugar na hierarquia, com medo, ouviam, com medo, cheiravam. Mas nada sabiam.

A partir desse momento, ele nunca mais conseguiu olhar para a carne da mesma forma. Conseguiu acabar o curso e foi empregado no talho de uma grande cadeia de supermercados. Tudo estava extremamente limpo, mas ele lembrava-se do cheiro do matadouro e lavava as mãos extremosamente, tantas vezes quanto podia. Com toda a diligência carregava as caixas, manipulava as carnes, cortava as peças conforme os clientes lhe pediam. Deixava a gordura de fora, cortava fatias finas, partia frangos ao meio. Mas a cada batida do cutelo na placa de acrílico, o seu estômago revirava-se, as lágrimas vinham-lhe aos olhos.

Pouco tempo depois, decidiu deixar de comer carne. Não contou a ninguém, nem à sua família. Omitia-se dos almoços com amigos para não ter de comer carne nem contar a ninguém. Afinal, onde já se viu, um talhante deixar de comer carne? Toda a sua proteína vinha do leite e do queijo, que comia aplicadamente a todas as refeições.

Quando foi ao médico, para uma consulta de rotina, avisaram-no do colesterol. Perguntaram-lhe da alimentação. “Sou vegetariano”, respondeu ele a medo. “Mas come queijo? O queijo faz-lhe mal, tem de reduzir.” Chegado a casa, preocupado, decidiu pesquisar sobre as propriedades do queijo. Tanto carregou no botão de busca, passando de página em página, que acabou por ir parar a um website de uma associação de protecção dos animais. Lá, revelavam a origem do leite. A forma como o leite era produzido. De fotografia em fotografia, o talhante olhou horrorizado para a forma como as vacas, animal com quem ele sempre simpatizara pelas suas manchas monocromáticas, eram tratadas. Roubavam-lhes os bebés para nós bebermos o leite. Era para eles, mas nós bebíamos o leite, que sentido fazia isso? Alojadas em locais esconsos e escuros, a sua única alegria era o alívio do sofrimento, a ordenha. Não, não podia ser! Ele recusava-se a contribuir para esse tipo de horror!

Nesse momento, deixou os lacticínios e empenhou-se em procurar fontes alternativas de alimento que não pusessem em causa o sofrimento dos outros. As memórias assombravam-no constantemente, mas ele achava que se não fosse um deles, um desses que matam animais para os comer, que os fazem sofrer para os comer, conseguiria parar todos os pensamentos tenebrosos que o impediam de dormir.

Mas o trabalho dele era aquele. Era talhante. Não tinha outro tipo de formação, não sabia mais nada. Para todos os efeitos tinha de trabalhar. Mas não havia nada mais que ele detestasse que o seu trabalho. Cortar. Desmanchar. Abrir. Partir. O cheiro nauseava-o, o barulho fazia-o estremecer com medo. Mas tinha de continuar.

Quanto mais pesquisava sobre o que comer, mais encontrava razões para eliminar a maioria das coisas da sua dieta. Descobriu que as árvores e plantas também sentiam. Segundo um estudo que tinha encontrado, conseguiram medir os seus gritos de dor com uma máquina de ultra-sons. Havia um exemplo no site. Ouviu-o e, depois de um momento atordoado, encolheu-se sobre si próprio e começou a chorar. Os seus soluços não eram nada. Não eram nada comparados àqueles pequenos gritos, um grito de um rebento de soja, um grito de um pé de feijão… “Por favor!”, gritava também a voz dentro da sua cabeça, “Por favor parem! Por favor deixem a relva sonhar!”

Passou a comer apenas frutos. O seu desejo era comer apenas pedras, mas o seu corpo, estúpido corpo humano e omnívoro, não lho permitia.

Andava com um ar cansado, macilento. Segurar no cutelo já era algo que fazia com dificuldade. Então, chegou o dia. Os seus olhos descaíam com a fraqueza, a faca deslizou para o sítio errado… Cortou-se no dedo indicador. Não era nada grave, nem precisaria de pontos. Mas assim que ele olhou para o sangue que escorria do seu dedo, misturando-se com o pedaço de carne que segurava, sentiu uma fome, uma fome avassaladora, a fome de todos os titãs da antiguidade, rugindo do estômago até aos ouvidos. Com a cabeça zunindo, fugiu dali. Ainda com o cutelo na mão, refugiou-se dentro da câmara frigorífica das aves. Em caixas, os pequenos cadáveres olhariam para ele se tivessem cabeça. Ainda assim, conseguia ouvir o seu cacarejar incessante. Arrancando as caixas umas das outras, espalhou todos os frangos pela arca. Conseguia vê-los. Fritos. Estaladiços. Com aquela leve gordura a espalhar-se pelos dedos. Lambeu o dedo. Sangue. Sentiu a ânsia do vómito a subir-lhe à garganta.

Correu pelo supermercado. Pessoas, pessoas em todo o lado. Poderia comê-las? Seria certo matar porcos e frangos mas errado matar pessoas? Para as comer? As pessoas afastavam-se dele. Passou pela secção de casa de banho e viu-se num espelho. Parou. “Eu sou isto?”, pensou enquanto olhava para o seu reflexo, “Eu sou realmente isto?” O reflexo mostrava um homem de tez amarelada, com grandes olheiras e as pupilas dilatadas. A boca arreganhada, mostrando muitos dentes, com pequenas bolhas de saliva entre eles. “Sou. Eu sou isto.”

A fome corroía-o como um ácido, sentia que um buraco se ia abrir no lugar onde tinha o estômago. Com esse buraco absorveria tudo, comeria tudo, nem assim se sentiria satisfeito. Passou pela zona de bricolage e apanhou um machado. A próxima coisa que encontrasse seria a sua refeição. Via as pessoas a correr por todos os lados, gritando com os braços no ar, “fujam que ele é maluco, fujam!” Ele abanava o machado para as apanhar, mas eram demasiado rápidas e imprevisíveis. De repente, acertou em algo. Era duro ao início, mas a força do machado penetrou com facilidade na polpa sumarenta do objecto.

Uma melancia.

Tinha-a partido exactamente ao meio. Ajoelhou-se e enterrou a cara nela, sentindo a textura fresca e molhada na cara. Era tudo tão doce.

Comeu até finalmente se sentir saciado. Deixou-se cair sobre as pernas e, com os braços a arrastar no chão, começou a urrar, num choro desmedido, num choro de quem tinha cometido o maior crime.

“Eu só tinha fome… Eu só tinha fome!”

Uma mão estava pousada no seu ombro, mas ele não via ninguém. Só ouvia uma voz, uma voz ténue e longínqua… “Ao menos não mataste ninguém.”
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