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A Sereia de Cacilhas

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O seu turno terminava com o último barco. A última viagem, uma e quarenta, Lisboa para Cacilhas, chegava entre a uma e cinquenta e as duas, dependendo do tempo que demoravam para atracar. Não lhe interessava, a sua única função era puxar a corda que impedia que o barco ficasse solto na água e fosse por ali, até ao mar. Por vezes ele pensava que poderia ser interessante deixar a corda e ver o cacilheiro a viajar pelo rio, a viajar pelo oceano, a viajar até à Índia, até África, até ao Brasil, até um qualquer destino de férias ambicionado pelos passageiros. Os passageiros do último barco eram sempre os mesmos, pessoas a voltar do seu trabalho nocturno ou pessoas a voltar da sua festa nocturna. De vez em quando, uma pessoa louca que ia para uma festa nocturna. Era indiferente, eram só pessoas. Ele vivia para o seu barco, para a sua corda. No final do turno deixava-se ficar a olhar para o cacilheiro. Gostava mais dos antigos, cor de laranja. O Lisbonense e Almadense eram demasiado grandes.

O seu turno terminava com o último barco, mas ele não se ia logo embora. Ficava ali, na plataforma. Ceava uma sandes e fumava um cigarro, a olhar para Lisboa e a ouvir a ponte. Os colegas deixavam-no, entendiam que era um hábito decorrente da solidão daquele trabalhador. Ele não dizia mais nada além do bom dia e boa noite, não tinha mais nada para dizer. E a verdade é que a única coisa que lhe dava conforto eram aqueles sete minutos e meio passados a olhar para o outro lado. Chuva ou noite clara, ele nunca sentia frio nem nunca estava cansado o suficiente para desistir do seu hábito.

Foi numa dessas noites, igual às outras todas. Ele estava a desembrulhar a sua sandes de pasta de atum do papel plástico transparente, hipnotizado pelo uivar da ponte. Não foi por nada, não foi com intenção nenhuma. Mas ele olhou para a água. Nela estava um vulto, podia distinguir-se mesmo na escuridão. Um peixe? Um peixe muito grande, tinha de ser. Mas o vulto saltou para fora de água e caiu na plataforma. Ele aproximou-se, apenas uma ponta do pão fora do plástico.

Quando viu melhor, correu. Era uma pessoa! Uma pessoa dentro de água, teria caído da ponte, um suicida? Mas como teria vindo parar tão longe? Ao aproximar-se, viu que o corpo branco que brilhava debaixo da lua era o de uma mulher. Estava nua e olhava para ele, assustada, olhos arregalados e húmidos. Mas não eram lágrimas, era a água do rio. Ajoelhou-se junto dela, para lhe perguntar se estava bem, o que se passava, quem era, para onde queria ir. Mas ao tocar-lhe não sentiu qualquer suavidade. Em vez disso, pele escamosa. A luz ténue fazia-as brilhar, as escamas. Então ele viu a cauda. Em vez de pernas, a mulher tinha uma cauda cinzenta, com barbatanas. E também as tinha entre os dedos e nos braços e nas costas. Virou-a para cima e analisou-a.

Tinha apanhado uma sereia no porto de Cacilhas.

Primeiro pensou em empurra-la de novo para dentro de água, mas decidiu aproveitar a oportunidade para a olhar melhor. Perguntou-lhe quem era, mas ela não sabia a língua das pessoas que vivem na terra e não respondeu. Ofereceu-lhe a sandes de pasta de atum. Ela comeu apenas o recheio. Só depois viu que ela tinha um saco de plástico preso na barbatana, tão apertado que a causava uma ferida, circular e arroxeada, com todo o ar de ser dolorosa. Com ajuda das chaves de casa, cortou o saco. Não tinha nenhum desinfectante, nem betadine nem nada, nem sequer sabia se aquilo era bom para peixes, por isso decidiu empurrá-la para a água e deixá-la ir à sua vida. Estes bichos devem ser resistentes, vivem dentro de água, não vai haver problema.

O turno acabava com o último barco, mas começava à tarde. No dia seguinte lá estava ele, quase esquecido do que tinha visto, quase convencido de que tinha sido um sonho. Nada sobrava dessa noite, nem o pão, que fora para as tainhas, nem o plástico, que fora para o ecoponto, nem sereia, que já devia estar no oceano Atlântico, ou pelo menos já devia ter chegado à Trafaria.

Recolheu a corda e preparou-se para a primeira viagem do cacilheiro, parado junto da janela como era seu hábito. Estava a olhar para as ondinhas quando viu uma cabeça a sair do meio delas. Era a sereia, que sorria e acenava para ele, saltando no meio das ondas do barco. Ele começou a rir-se e todos os colegas pensaram que lhe tinha acontecido uma coisa boa, a ele que era uma pessoa tão sozinha. Nessa noite ela sentou-se na plataforma e ele sentou-se ao lado dela a comer. Partilhou a pasta de sardinha do recheio com ela e conversou. Sabia que ela não entendia nada mas, como parecia gostar de o ouvir e sorria, não deixou de falar. No dia seguinte, antes de ir para o trabalho, passou na farmácia e comprou um tubo de bacitracina.

Já não sei quanto tempo é que isto durou, mas ainda foram algumas semanas. A sereia seguia o cacilheiro da Margem Sul para Lisboa e com certeza que houve muita gente que a viu. Mas como era uma sereia e as sereias não existem ninguém acreditou. Mas aquele homem de que eu falei acreditou nela. Não só acreditou como lhe deu de comer e lhe pôs a pomada antibiótica na cauda. Todos os dias para ele eram a ambição de que a noite chegasse. Era a primeira pessoa com quem conversava em muitos anos, apesar de não ser uma pessoa da terra e de não entender as palavras das pessoas da terra. Como ele queria saber a língua das pessoas da água para que ela lhe pudesse contar sobre os mares por onde tinha nadado, os peixes que tinha conhecido. Será que ela sabia sobre o que as baleias cantavam? Será que cantavam baladas?

Tantas questões que ele tinha para lhe fazer e tantas coisas que ele queria que ela percebesse. Ele dizia-lhe, como ela era bonita, apesar das suas escamas lhe fazerem impressão nos dedos, como os seus cabelos cheiravam a mar, cheios de algas e animais com casca que as comiam, como a sua cauda era brilhante. Por vezes pensava que se calhar ficava bem grelhada à moda de Setúbal, mas isso não lhe dizia. Olhavam os dois para as tainhas que comiam o lixo por baixo da plataforma e riam-se. Rir ao menos era uma linguagem universal, até os peixes podem rir. Com a sereia ele sentia-se bem e muitas vezes, quando apanhava o metro de superfície para ir trabalhar, pensava que seria bom se ela tivesse pernas como as pessoas da terra. Assim, mesmo que continuassem sem saber a língua um do outro, ela poderia ir viver para aquele quarto vazio que tinha em casa e ele podia fazer-lhe os melhores pratos de peixe que sabia. Comeriam com talheres, na mesa com a toalha de plástico com flores, junto da janela e a luz passaria limpa pelas cortinas rendadas que a mãe lhe tinha dado.

Mas a pouco e pouco, ao vê-la melhorar da ferida de dia para dia, ele começava a perder a esperança de que ela um dia ganhasse umas pernas. Então decidiu que talvez tivesse de ser ele a mudar. Certa noite, numa noite de lua cheia, ficou para trás. Disse que fechava ele a porta do barco. Fechou-a. Mas antes trouxe um colete salva-vidas. Pô-lo e, sob o olhar curioso da sua sereia, atirou-se para dentro de água. Encheu-o, ia nadar com ela. Sentiu as tainhas a rodeá-lo e os braços da sereia a rodeá-lo, a água a rodeá-lo, a luz a rodeá-lo. Fechou os olhos com força, sentindo as dentadas das tainhas, sempre com fome, a debicar-lhe a roupa, um furacão de tainhas de volta dele.

Mas ele esqueceu-se de que as sereias são carnívoras.
Tava eu a ouvir o hip-hop e olha
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TheFabulousMomo's avatar
" Por vezes pensava que se calhar ficava bem grelhada à moda de Setúbal, mas isso não lhe dizia"

O que eu me ri com isto ahahah

Até ao final, juro que me estava a debater se uma sereia comer peixe era canibalismo ou não xD

Muito bom :D